segunda-feira, 17 de maio de 2010

Das mãos às mãos.

Tenho um livro chamado FLICTS.

Ele deve ter chegado nas minhas mãos quando elas ainda eram bem pequenas até para segurá-lo.

De alguma forma, mesmo que a gente não leia todo dia as mesmas palavras, esse livro me acompanhou enquanto não só as mãozinhas, mas as canelas e cabelos também cresciam.

Ele foi a ponte para quando, crescida, eu quis alcançar outras palavras, segurar outros livros. A ponte. Como a maioria dos livros que vêem – e fazem – a gente crescer.

Acho que esses livros de criança seguram a nossa mão até que a gente sinta que pode soltar, e finalmente alcance outras páginas. Livros vão nos levando, e devem levar infinitamente, não sei.

FLICTS me cabia por completo aos cinco anos. E sem ele eu talvez não chegasse aos que me cabem hoje, aos vinte e dois.

Acontece que, mesmo muito agradecida a toda a importância do Sr. FLICTS em minha trajetória com os escritos, hoje ele me serve apenas de lembrança. Uma nostalgia, de cheiro de tarde sem trabalho e paginas amareladinhas.

Sinto que ele ainda está em plena forma. Dá conta de contar a mesma história, como se estivéssemos naquela época em que ele ainda tinha cheiro e pose de recém chegado. E isso me faz pensar que provavelmente Sr. Flicts ainda sirva bem ao papel de ponte. Capa de 20, mas com gás de 16. Inteirão mesmo. Provavelmente não para mim ou pra algum de nós metidos a leitores vividos, mas algumas mãozinhas que ainda vacilam em conhecer essa caminhada poderiam seguramente dar uns primeiros passos com a ajuda dele.

Então, aqui estou eu empatando o livro de fazer o que precisa fazer. Fazendo-o contar suas historias pra mim, que chata já não me impressiono, e privando-o de encantar gente realmente legal. Livros são, para mim, o maior exemplo de que usos são primeiros que as posses. Simplesmente porque algumas coisas valem mais por circularem. Porque rendem mais trocando de donos.

Quantas partes do dia já estão sobrando daqui e bem podem estar fazendo falta em algum outro canto? São esses acúmulos que custam, mas bem deviam encontrar os vazios.

Repassar, trocar, presentear com coisas que já nos foram valiosas e que mesmo indo não deixam de ser.. Nesse caso, ainda que se esvaziem as caixas, pouco se subtrai, porque o que devia ficar, já ficou.

Acredito que tem coisa demais nesse mundo pra gente ainda achar que precisa comprar mais. Negócio é que as vezes elas se perdem em estantes, se prendem em uns cantos. Circular os usos, dividir os benefícios, faz muito mais sentido do que guardar na gaveta pra sempre aquele livro que já te contou milhões de vezes as historias que tinha pra contar. Ainda há mãos pelas quais as coisas precisam passar..

Já que agora é certeza que não esqueço mais a história, vou ali levar o Sr. FLICTS pra passear.

domingo, 21 de março de 2010

Espelhos.


Uma vez li a respeito de uma pesquisa sobre crianças de comunidades carentes, socialização e auto-reconhecimento. Falavam sobre os meios de socialização e de como eles estão ligados aos processos de identificação, identidade. No desenvolvimento da pesquisa foi realizado o teste do espelho, onde as crianças ficam diante do tal espelho e após um período inicial tem seus narizinhos pintados, sem que percebam. Daí, diziam eles, nem todas as crianças reconheciam aquela imagem refltida no espelho como sendo delas mesmas, reagindo como se a manchinha estivesse não ali, nos seus próprios, mas acolá no nariz de qualquer outro. Segundo o senhor que começou essa história de espelhos, manchas e reconhecimento, chimpanzés e orangotangos com alguma vida social quando diante dos espelhos sacavam logo que alguém havia lhes pintado as orelhas, narizes e o que mais fosse. Mas, por algum motivo, as criancinhas que eram criadas com mais oito irmãos em situações não tão felizes e coloridas não tinham a dita de ao menos perguntar quem era que tinha tido a idéia de lhes sujar. Mesmo que após os dois aninhos, teoricamente, os donos de polegares opositores - e
telencéfalos altamente desenvolvidos - saibam muito bem quem são quando estão diante de espelhos, se reconhecer leva tempo. O tal pesquisador que tentou com orangotangos devia estar meio enrolado de tempo e imaginava que era mais fácil sair pintando primatas, porque com os tais humanos a coisa toda é sempre bem mais complicada.

Auto reconhecimento, acho eu, é algo como perceber-se, identificar-se. Ver a si mesmo em algo lá fora. Lá fora, porque saber-se de dentro é outra história. Se me perguntarem quem sou eu, posso gastar uma porção de horas falando sobre umas coisas que acredito, umas outras que vivi e tantas outras que faço e ainda quero fazer. Essa sou eu, pra mim. Ser contado de fora, explicado do lado de lá, costuma nos fazer achar que aquilo que pintaram está bem longe do que entendemos – e teimamos – sermos nós mesmos.

Nascemos no zero, vazios-vazios. Nos apropriamos aos pouquinhos de tudo que encontramos por aí e vamos nos tornando um rascunho, meio colagem, dos adultinhos que seremos. Assim a gente aprende a dar saúde quando espirram e gritar coisas feias quando topamos com o dedinho. Somos uma construção nossa com o cimento dos outros e isso torna muito difícil para a maioria aceitar com graça e elegância quando algum outro engenheiro vem falar sobre a nossa obra. Parece meio óbvio que não há cristão na Terra que possa saber mais da gente mesmo que nós, os próprios. Mas é aí que, acredito, a maioria fecha os olhos e prefere encontrar manchas nos narizes alheios. Narizes limpos são muito mais fáceis de lidar, reconhecer-se manchado dá um tanto maior de trabalho.

Acho que não sou só eu - e minha mania (criteriosa) de gente - que entendo que o outro é fundamental para sermos. Tom tinha razão, é difícil mesmo ser feliz sozinho. Não só porque as pessoas têm coceirinhas nas costas onde não conseguem alcançar ou porque são realmente necessárias mais de duas mãos para algumas músicas no Guitar Hero. Mas, simplesmente porque sem o reflexo do que somos nos outros é impossível se tornar melhor. E é nessa hora que é importante ter os olhos abertos, para ver o que o espelho nos reflete. As pessoas são realmente uns bons e típicos espelhos. Exceto pela parte de que espelhos não mentem, pois sabe-se bem que há sempre um ou outro mentiroso por aí, são igualmente os outros que nos podem dizer melhor sobre nossos defeitos, qualidades e novos cortes de cabelo. Há aqueles que deformam, nos engordam e emagrecem, mas até esses se baseiam na imagem real do que passamos.

Aprender a reconhecer-se é aprender a aceitar que não somos apenas o que contamos, achamos e juramos de pés juntos ser. É enxergar que somos também as impressões que causamos, os sentimentos que damos de gerar e as emoções, boas e ruins, que suscitamos. É mais ou menos por isso que a maioria não passa sem espelhos, porque sabemos bem que, além de feijão entre os dentes, há certas coisas que não podemos enxergar sozinhos. Daí, vai ver, o medo maior do espelho se quebrar. Precisamos dos outros para enxergar por completo quem somos e mais ainda de uns olhos bem abertos para enxergarmos e reconhecermos as manchinhas que eles nos mostram.